Discriminação positiva

 

Programa de trainee só para negros é legal?

Em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, no último final de semana, o presidente da Magazine Luiza, Frederico Trajano, afirmou que, em 15 anos, seu programa de trainees formou cerca de 250 jovens profissionais. Desses, só 10 eram negros.

Apenas 10 trainees formados eram negros, ou seja, 4% do total! Guardem esta informação, voltaremos a ela.

Para quem está por fora do assunto, uma breve recapitulação. A Magazine Luiza anunciou um programa de treinamento exclusivo para candidatos negros.

Bastou o programa ser divulgado, para que as redes sociais, palco de enormes polarizações, registrassem um número altíssimo de interações afirmando que a medida era ilegal e criminosa (esta polarização das redes é muito bem mostrada e explicada no filme “O Dilema das Redes ”, disponível na Netflix).

O principal argumento, resumindo e trazendo apenas para o campo jurídico, é o seguinte:

O artigo 7ª da Constituição, XXX, proíbe expressamente a utilização de raça ou cor como critério de admissão. A lei 7716/89 vai além e considera a utilização deste critério criminosa.

O programa da Magazine Luiza está usando o critério racial como critério de admissão? Sem dúvida alguma. Então faz sentido o argumento de que ele fere a Constituição? Sim, faz sentido.

Mas apesar de fazer sentido, é uma interpretação incorreta da norma, baseada na perigosa interpretação literal de um dispositivo legal divorciado de seu contexto.

A iniciativa é absolutamente legal. Convido o leitor a acompanhar o raciocínio.

Toda lei deve ser interpretada em diversas dimensões. Destaco aqui a interpretação teleológica e a interpretação histórico-evolutiva. Se você não é familiarizado com o mundo do Direito, isso pode parecer um palavrão. Mas, não se preocupe, vamos explicar rapidamente.

A interpretação teleológica leva em conta a finalidade da norma.  A lei foi criada para atacar qual problema, ou “dor” (para ficar na linguagem das startups)?

A interpretação histórica leva em conta o contexto histórico em que ela foi criada. Resumindo: Por que, historicamente analisando, a norma foi criada?

O Brasil foi um país historicamente forjado na exploração do trabalho de uma população de origem africana brutalmente escravizada. O Brasil foi o último país ocidental a abolir a escravidão. Resumindo bem, este é o contexto histórico que falamos acima.

Agora, vamos, então, para a tal interpretação teleológica. Este contexto histórico, da escravidão, levou a uma marginalização da população negra em nossa sociedade. Para citar um número no campo do Direito do Trabalho, a população negra recebe, em média, metade do salário da população branca, ocupando a mesma função. Para corrigir esta distorção, a lei foi criada. Está aí a interpretação teleológica.

Mas, para fechar a lógica da interpretação, não é preciso olhar para fora. Basta ver o dado interno, da própria Magazine Luiza, trazido no começo do artigo.

Em 15 anos, a empresa formou 240 trainees brancos e 10 negros. Dá para considerar a medida de convocar neste ano somente a população negra como ilegal e discriminatória? Obviamente, não.

Em média, a companhia forma 16 trainees por ano. Se neste programa ela conseguir que todos terminem, serão mais 16 colaboradores negros. Seriam 26 negros frente a 240 trainees brancos formados em 15 anos de programa.

A Magazine Luiza discrimina? Se sim, que grupo étnico é discriminado?

Cabe aqui destacar o princípio da isonomia material, que prega que se deve tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade.

Assim, medidas como a da Magazine Luiza enquadram-se na chamada “discriminação positiva”, que são as ações afirmativas que visam corrigir estas distorções históricas.

É o caso, por exemplo, da política de quotas, amparada na lei 12.990/14 e declarada Constitucional pelo Supremo.

Pode-se discutir se a medida é efetiva, se é a mais justa, se é produtiva. Mas deve-se lembrar que a Magazine Luiza é uma empresa privada. Livre para tomar suas decisões, desde que estas não sejam ilegais.

Vivemos em uma democracia. Você pode não concordar com a medida adotada. Mas, do ponto de vista jurídico, a medida é absolutamente legal.

E, cá entre nós, na minha opinião, é também excelente do ponto de vista social.

 

JOÃO PAULO TAVARES SOARES é advogado, sócio titular de TAVARES SOARES ADVOCACIA e presidente da Comissão de Direito do Trabalho da OAB São Caetano do Sul/SP